Em defesa do suvenir de viagem
Em tempos de desapego e desacumulo de material, um manifesto pela manutenção dos objetos que transbordam memória afetiva.

Suvenir. Até mesmo a palavra é bonita. Ela tem aquele gentil som sussurrante de lembrança sendo revivida. Categoria maravilhosamente inclusiva, ela pode ser aplicada a qualquer coisa, pois qualquer coisa pode ser um suvenir, qualquer objeto cujo valor real se encontra na associação com uma viagem passada ou, suponho eu, uma pessoa. Um suvenir de uma cidade. Um suvenir de um caso de amor. Algo que pode ter começado como um inconveniente (onde vou botar este treco dentro da mala?), mas que ao chegar em casa ganha espaço no console da lareira como lembrança de uma delícia. Se for um suvenir, ela pode transcender o cafona, ao menos durante a sua vida. Você é o guardião de seu valor.

Porém, como é possível defender os suvenires com tanta propaganda contra a acumulação de coisas no ar? Vivemos numa era em que ser minimalista é considerado moralmente superior; não que eu já tenha conhecido um adepto do minimalismo, veja bem. Esperam que paremos de acumular coisas e comecemos a dividi-las. O conceito apresenta um problema sério para viajantes e seus suvenires. E encaremos os fatos: nós todos somos passageiros nesta viagem chamada Vida.
Quando abro meu atulhado armário de roupa branca, pensando que desta vez darei uma geral, encaro os suvenires. O cobertor de inverno leve que mantenho ao pé da minha cama quando as folhas de outono começam a trocar de cor veio de uma barraca da Índia. A colcha de algodão brilhantemente bordada que cobre meus lençóis no verão veio de uma lojinha em Casablanca. Entro debaixo das cobertas e sonho com os lugares onde estive. 

Como é possível defender os suvenires com tanta propaganda contra a acumulação de coisas no ar.

Fim da faxina. A mesma coisa acontece quando espano meus suvenires: uma xícara de chá do Japão, um pedaço de coral da Flórida. Sou levada à deriva nas correntes da lembrança. Assim, vou tomar uma posição radical contra quem é anticoisa: danem-se. Alguns de nós – ouso dizer a maioria de nós – adoramos nossas coisas. Depois de lutar durante anos com minha ligação inconveniente às minhas coisas, depois de resistir a bazares exóticos e barracas vendendo bugigangas, estou declarando meu amor às minhas coisas.
E por que não deveria? Fazer compras, afinal, é uma experiência de viagem essencial; é uma forma profundamente interessante de compreender uma cultura. (E só vou até esse ponto nas racionalizações.) Eu procuro ótimas lembranças aonde quer que vá, incluindo as zonas sem compras mais rurais, fora de mão, desoladas de qualquer guia de viagem. É impossível me levar a uma caminhada sem me ver procurando um suvenir perto da trilha ou do estacionamento, na estação rodoviária ou ferroviária. Madeira encontrada numa praia no Norte californiano ou um geodo (rocha de interior oco revestido de cristal) de uma loja de pedras do Colorado é o bastante.

E eu sou uma compradora ligeira, até mesmo impaciente. Num piscar de olhos um objeto cintilará para mim. Posso contar, entre meus achados perfeitos, toalhas de chá de uma ilha na costa canadense, sabonetes artesanais de lavanda de Marselha, uma escova para sapato compacta de um minúsculo vilarejo italiano, uma caneca de lata de um camelô na Índia. E sempre que procuro aquela toalha ou xícara, posso ouvir, cheirar e ver sua terra natal.
Não que você tenha realmente de ir à Turquia, Índia, Quênia para ter narguilés na estante de livros, tecelagens na cama ou tapetes kilim enfeitando o chão. Lembra-se dessa época? Não muito tempo atrás, um pedaço antigo de tecido desbotado enquadrado na parede era o sinal de um viajante intrépido que havia vagado pelas feiras do Afeganistão. Isso acabou. Tamanho é o apelo da viagem que os lojistas capturaram sua essência e a trouxeram até a nossa casa. É possível bater perna até a loja de decoração local e sua casa vai parecer a de alguém que já cruzou o mundo. Na verdade, por que sair de casa? Entre na internet e compre o desejo de viajar. 

Meu filho mais velho, que agora adora viajar, desenvolveu um forte afeto por lembranças de monumentos mundiais quando era criança. Quando estava no ginásio, sua mesa de cabeceira trazia uma bela amostra de monumentos em miniatura: a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a Torre Inclinada de Pisa, o Big Ben. Ele não havia visto nenhum deles. Os suvenires do meu filho – era fácil comprar para ele quando eu viajava a negócios – eram antecipações, promessas de viagem, da mesma forma que o belo vajra de latão, uma pequena arma ritual que estranhamente parece um chocalho de neném, o qual representaria firmeza de espírito, da minha mesa. Na verdade, ele foi comprado numa loja de consignação em Westchester, mas, de fato, é um suvenir da intenção, da esperança de um dia talvez viajar ao Nepal.


Contrariamente a quem se opõe a coisas, estou convencida de que necessitamos de determinado número de suvenires em nossas vidas, uma dose saudável de recordações na qual encontramos alívio, uma válvula de escape da rotina diária em praias distantes. Essas coisas fazem bem à alma. Elas entram e saem de nossas vidas em grandes ondas eternas. Caso você se livre dos suvenires, em breve outros aparecerão diretamente na sua casa porque a coisa, a exemplo do peso corporal, tem um ponto de acerto, engenhosa e particularmente calibrado para cada um de nós, de tal forma que, independentemente daquilo de que nos livrarmos, logo vamos arranjar mais objetos ou ficaremos infelizes.
Os budistas dirão que o apego causa sofrimento. Esta frase em particular entrou de forma tão perniciosa na minha consciência que ela em si causa sofrimento. Pensei muito e com empenho nela. Até mesmo enquanto acariciava lindas xícaras de chá em Kyoto – claramente um local propício para sensibilizar alguém quanto aos perigos do apego –, sentido o peso da argila queimada na minha mão, correndo um dedo ao longo do veio do lustroso esmalte vidrado, considerando qual recipiente compraria, enquanto tentava calcular a taxa de câmbio, eu pensei a respeito de como outro novo apego a uma coisa causaria um novo sofrimento. E joguei fora a cautela no caixa eletrônico, mais uma vez.

Talvez eu simplesmente não entenda a forma budista dos suvenires. Pois eu considero o apego a substância da vida. O que nos traz ao que passei a pensar como o Problema do Caramujo. Arraigado em algum lugar da psique do viajante existe uma afeição atávica por uma pequena e viscosa criatura que carrega somente o que precisa nas próprias costas. Há quem possa considerar isso uma metáfora atraente para nunca ter de sair de casa; ela está permanentemente ligada a você. Entretanto, eu acredito que a interpretação clássica, a lição para as pessoas de determinada mentalidade de hoje em dia, é a de que você somente deveria possuir o que pode carregar. Conclusão: viaje somente com o que pode carregar. Sem chance.
Nós não somos caramujos. Nunca vamos nos tornar caramujos. Nós viajamos alegremente pelo mundo, pasmados, respeitosos – e instigados – pela variedade do tesouro humano. E acumulamos coisas destinadas a se tornarem convidados charmosos e peculiares em nossas casas, convidados que simplesmente ficam ali parados, silenciosamente acumulando a pátina do tempo. O passar do tempo os transforma em objetos melhores. Na verdade, em vez de ouvir os caramujos, seria melhor perceber que temos algo a aprender com nossas coisas. Algo sobre esplendor, fragrância e individualidade. Nossos suvenires nos lembram de vidas bem vividas.


Às vezes eu penso em deixar para trás este mundo naquela última e derradeira jornada na qual não existem portões de embarque, códigos secretos para quem partir primeiro, nem sequer partidas com hora marcada. Quando penso em não estar mais aqui, não fico achando que meus filhos vão se sentar e se lembrar do jeito que eu fazia bolinhos com todos os ingredientes esquecidos na geladeira, nem presumo que vão se lembrar do jeito que eu dobrava a ponta de seus cobertores na hora de dormir.
Não. Eu penso nos meus suvenires e em como meus filhos – apesar de que eles farão suas próprias viagens neste mundo e trarão de volta seus próprios suvenires – irão herdá-los. Penso que seria bom se eles os guardassem porque foram preciosos para mim, enfeitando as casas nas quais eles cresceram. Porque meus suvenires contêm os traços da vida que entalhei neste mundo. Meus filhos irão olhar a garça de madeira de Massachusetts e recordar que ela sempre estava na frente de uma janela, sonhando ardentemente com o charco. Eles vão folhear os maravilhosos volumes dos romances de Dickens daquela singular livraria de Londres e saber que sempre existe uma boa história ao alcance da mão, à espera que eles os abram, independentemente do clima interno. Eles vão limpar uma cerâmica japonesa e lhe agradecer por conter mais uma chávena de chá.

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Fonte: IG

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